Matisse - Mulher com chapéu



Mulher com chapéu [La femme au chapeau, 1905], óleo sobre tela, 80,6 x 59,7 cm, San Francisco Museum of Modern Art, São Francisco, legado Elise S. Haas.


No livro Matisse: imaginação, erotismo, visão decorativa, T. J. Clark (historiador e teórico de arte inglês) faz uma descrição muito bonita e detalhada do quadro Mulher com Chapéu, de Matisse. Ele escreve como uma pessoa que está vendo a pintura pela primeira vez e tentando desvendar os seus detalhes, com muita atenção. É um ótimo exemplo de como olhar para uma pintura.

A seguir, registro o que pra mim foi mais importante, depois de uma primeira leitura do texto de Clark.

Mulher com chapéu é um retrato da esposa de Matisse, Amélie Parayre, exposto pela primeira vez no Salão de Outono de 1905 e que causou muita polêmica na época.

Quando Matisse pintou este retrato, Amélie estava com 33 anos e já tinha dois filhos. Ela era chapeleira e seu ofício havia mantido várias vezes o sustento da sua família. Com 22 anos, ela começou a trabalhar com sua tia, dona da Grande Maison des Modes no boulevard Saint-Denis. Quatro anos depois e há um ano casada com Matisse, ela abriu sua própria chapelaria, graças aos contatos de sua tia. Segundo Clark, isso possibilitou que Matisse continuasse pintando em tempo integral. Porém, em 1902, sua chapelaria faliu, devido ao envolvimento de seu pai num escândalo político e financeiro. Sua saúde ficou muito debilitada e em 1903, ela voltou a trabalhar na loja de sua tia.

Para Clark, o chapéu não foi pintado inocentemente, além de provavelmente ter sido confeccionado pela própria Amélie, ele representava o sustento de Matisse. O chapéu é abstrato. O pintor não se preocupou em mostrar os seus detalhes. E o seu caráter espetacular, como diz o autor, não tira a nossa atenção da humanidade e expressividade do rosto de Amélie.

Segundo o autor, o retrato foi pintado rapidamente porque Matisse estava muito ocupado com a pintura de uma paisagem maior e mais elaborada, a qual ele havia planejado para ser a pintura principal da sua exposição no Salão. O autor não diz se Matisse terminou essa paisagem e se foi exposta junto com Mulher com Chapéu.


Clark compara este retrato com um retrato pintado por Cézanne dois ou três anos antes de 1905, Mulher de azul. Sergei Shchukin (principal patrono de Matisse) havia comprado esta pintura de Vollard. Matisse pode ter visto esse quadro na galeria de Vollard, em alguma retrospectiva de Cézanne ou na coleção de Shchukin. O que importa é que Cézanne era uma grande referência para Matisse e para Clark é como se Matisse tivesse pintado Mulher com Chapéu a partir de Mulher de azul.

Para Clark, "o enigma reside na pose e nos trajes da mulher [...]" (CLARK, 2009, 50). Há uma certa dificuldade em distinguir os inúmeros elementos mais abaixo, no corpo, e a pintura nos instiga a questionar que tipo de vestido ela está usando, aonde estão os ombros e os seios, e o que representam as linhas e áreas de cor, como por exemplo, a curta linha branca (ou bege?) ao lado de uma grande mancha de azul índigo na parte inferior direita do quadro. O autor questiona se essa linha separa pele e tecido, formando um grande decote, ou se separa dois tecidos diferentes, um tecido florido desde o pescoço e outro do vestido propriamente dito. Outra pergunta interessante: a pele do pescoço, do peito e do braço está representada na pintura?

Segundo o autor, muitos livros afirmam que ela está sentada com a mão apoiada no braço de uma cadeira. No entanto, para Clark, o único sinal de uma cadeira é uma diagonal vermelha, como se fosse o encosto, o qual escora o cotovelo de Amélie. Para ele, a mão estaria apoiada numa bengala com punho de metal ou numa sombrinha. A meu ver, ela só estaria escorando o cotovelo no encosto se ele fosse muito baixo. Se não, o cotovelo estaria saindo pra fora e o que estaria escorada seria somente a mão. A mão esquerda de Amélie está meio indefinida, não é possível saber se está com luva ou não, e parece repousar no seu colo.

Amélie parece segurar algo com a mão direita, na ponta escura da luva, representado em cor-de-rosa e amarelo. E o autor pergunta: será um lenço?

Para Clark, se a faixa de vermelho, alaranjado e amarelo na cintura representa um cinto, provavelmente a faixa transversal análoga, em tom alaranjado, no pescoço, não representa a pele e sim uma echarpe que combina com o cinto.

É possível observar que Matisse utilizou a mesma cor e suas variantes para coisas totalmente diferentes. No cinto e na echarpe, por exemplo, ele utilizou a mesma cor laranja, mas em tons diferentes. É interessante observar uma cor e procurá-la em outra parte da pintura, com outra tonalidade ou a mesma cor (ou quase a mesma) em pontos diferentes. Segundo o autor, algumas cores aparecem apenas uma vez, mas eu não consegui identificar, talvez por estar olhando uma reprodução e não a pintura ao vivo.

De acordo com Clark, todo o quadro depende do toque final de amarelo na ponta do nariz de Amélie. Tampando essa pequena mancha de cor com o dedo, tive a impressão de que o quadro fica menos iluminado. Impressionante como uma mancha minúscula transforma todo quadro.

Clark destaca o desenho da boca de Amélie. "[...] Nada poderia ser mais trabalhoso, exigindo tamanha prática e pesquisa, do que o desenho de sua boca [...]". Ele descreve os detalhes da sua representação e diz que "[...] a boca domina o quadro. O quadro gira em torno dela [...]". Na minha opinião, a boca juntamente com os olhos definem o estado de espírito do quadro. Mesmo se boca fosse representada com um sorriso, o olhar denunciaria o estado de desânimo ou tristeza. A mesma coisa aconteceria se os olhos fossem representados com um brilho, a boca também indicaria aquele mesmo estado. E o autor confirma que na época dessa pintura, Amélie havia sido exposta publicamente de uma forma terrível (CLARK, 2009, 52).

O autor descreve muito bem como o trabalho é construído mais a partir de sensações cromáticas do que de um desenho: "[...] boa parte do rosto é indicada apenas de maneira mínima e esparsa. A mandíbula e as bochechas são toques, pinceladas, sobre uma base líquida sem grandes modificações, num tom leve de verde acinzentado. A orelha é um simples borrão, cercado por traços do rascunho em carvão [...]" (CLARK, 2009, 53).

Mais a frente no texto, Clark revela o enigma do peito e ombros de Amélie, que antes pareciam cobertos por dois tecidos ou encobertos por um enorme decote. Ela "[...] está segurando um leque aberto, talvez com um padrão floral, ou com um buquê de verdade em sua frente, disposto de forma um pouco desajeitada [...]. Talvez o leque esteja um pouco torcido e recurvado - pela forma com que Parayre o segura [...]" (CLARK, 2009, 53). Ele levanta a supeita de ela estar segurando um papel amassado, ao invés de um lenço, e o que antes era uma bengala ou sombrinha, agora se transforma provavelmente na borla pendente do leque. Clark suspeita também que as flores não sejam decoração do leque e sim um buquê, devido a densa camada de tinta branca, se destacando das demais partes do quadro pela sua expessura. Para ele, Matisse talvez tenha pintado o leque para criar um efeito de abertura da figura e girá-la mais em direção ao espectador.

Amélie parece estar sentada de lado para o espectador. A posição do rosto também não é frontal, está virado (ou se virando) de encontro ao nosso olhar. Como o leque está tampando quase toda a frente do corpo, não há como saber se ela está de frente para nós ou se essa frontalidade é apenas sugerida pelo leque.

Engraçado que, até o autor começar a falar do leque, eu não o enxergava. Para mim, ela estava usando um vestido com um grande decote. Agora que ele mostrou o leque, já não consigo olhar a pintura como antes. Agora percebo que eu queria ter descoberto o leque por mim mesma. Não olhei atentamente a pintura antes de ler o texto. Isso me fez pensar que, numa mediação entre o espectador e a obra num museu, é muito importante que o mediador provoque o olhar atento, antes de fornecer as informações sobre o trabalho.


Referência:
CLARK, T. J. A consciência de Matisse. In: SALZSTEIN, Sônia. Matisse: imaginação, erotismo e visão decorativa. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 43-59.

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